quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

DIÁRIO DA TRIBO

O Xampu Acabou!


Esse foi o primeiro alerta que soou me dizendo que eu estava só. Em dez anos de casamento, o xampu jamais havia acabado. Nesse tempo todo, eu nunca precisei comprar uma gota de xampu. Agora, separado, estava eu lá, olhando abestalhado para a estante do banheiro e me perguntando “e agora?”

Era parte do casamento uma divisão harmoniosa de tarefas. Ela cuidava dos itens de toalete, eu ficava com as coisas da garagem. A cozinha, nós dividíamos. Eu comprava os artigos alimentícios de primeira necessidade: Danete, Nutella, biscoitos, queijo, cerveja, refrigerante... Ela se responsabilizava pelos supérfluos do dia a dia: arroz, feijão, legumes, a carne do almoço... De um dia para o outro, estes últimos ficaram órfãos.

O xampu também. Admiti, enfim, que a única pessoa que poderia compra-lo agora estava me olhando com cara de idiota no espelho. Foi aí que me atormentou uma segunda questão: que xampu comprar? “Dãhhh, compre o mesmo que acabou!”, diria você. Quisera eu fosse fácil desse jeito. O xampu era daquela empresa que não gosta de homens, a Natura. Homens precisam entrar na loja, pegar o produto, passar no caixa e ir embora. Simples assim. Mas a Natura tem como missão acabar com a objetividade masculina. Ela não tem loja! Eu estava numa cidade nova e teria de caçar uma “representante Natura”, folhear um catálogo com milhões de batons, sombras e cremes para caçar um simples frasco de xampu e depois esperar um mês para o bendito chegar.

Quando fomos morar juntos, umas das primeiras perguntas que ela me fez foi: “que tipo de xampu você usa?” “Que tipo de pergunta é essa? Eu uso qualquer xampu, ora!” “Você não pode usar qualquer xampu, o seu cabelo é oleoso!” Caramba, acabava de me juntar à pessoa e ela sabia mais do que se passava na minha cabeça do que eu mesmo. Em pouco tempo, ela dobrou os itens de toalete que eu usava e quintuplicou meus perfumes. “Você precisa de um sabonete facial. É bom passar um condicionador de vez em quando...”. Eu não me atrevia a questionar, afinal ela transitava com tranquilidade naquele mundo misterioso e complexo em que só mulheres e metrossexuais habitam, o universo dos cosméticos.

Um mês depois do fim do casamento, ela passou em casa e eu quis mostrar orgulhoso o xampu que eu tinha comprado sozinho na Mahogany, loja bacana, pra não ter perigo de levar uma porcaria. “Fábio, o tipo de xampu está certo, mas eu havia lhe falado que os translúcidos são melhores. Esse é opaco!” Verdade. Ela havia defendido por várias vezes a superioridade dos xampus translúcidos, mas eu não havia me lembrado. Comprei um xampu opaco! Mas foi uma semivitória! Antes de conhecê-la eu passaria Omo líquido nos cabelos e nem notaria a diferença. Evoluí de ogro a lorde.

Quando estávamos juntos, sempre dizia a ela que a razão de eu ter me casado era a minha dificuldade de juntar os potes Tupperware às suas respectivas tampas. Quando a união terminou, percebi que aquela brincadeira era uma verdade maior do que eu imaginava. Uns trinta potinhos de formatos e tamanhos parecidos e suas tampas coloridinhas espalhadas pelo armário fazem a tarefa de guardar os restos do jantar uma missão longa e tediosa. Os marmanjos que não valorizam a vida a dois, com certeza, não usam Tupperware.

É esquisito ver, de repente, passar uma semana inteira sem levar nenhuma bronca. A máquina de café tem uma bandeja ajustável. Para tirar um espresso, às vezes, eu segurava a xícara no ar, mania que peguei da máquina do trabalho que tinha bandeja defeituosa. Nessas horas, era inevitável: “Fábio, acerte a bandeja e coloque a xícara nela!” É difícil dizer como é estranho tirar café “aéreo” no meio do mais absoluto silêncio. Nos primeiros dias, eu até olhava para trás cobrando uma censura de alguém que não está lá. Mais bizarro ainda é quebrar um copo sem levar um escalda-rabo instantâneo. A primeira vez que isso aconteceu, fiquei até triste. “Hei, quebrei um copo! Ninguém se importa com isso?”

Não é mole se desapegar das banalidades cotidianas que encheram os meus últimos dez anos. Muitas vezes saía de casa deixando alguém ainda dormindo. Era minha rotina dar uma bicotinha numa bochecha morna que ainda ressonava. Recebia de volta um sorriso vindo do meio do sonho. Era o nosso “bom dia”.Também não sei o que fazer com mil coisas do universo feminino que sobraram por aqui. Mudei de apartamento e a diarista me perguntou o que era para ser feito com os vasinhos de plantas artificiais, as velas coloridas aromáticas, os enfeitinhos de prateleira... “Sei lá”, respondi, “acho que o departamento de decorações desta casa foi desativado”.Me acostumei a assistir TV sempre com companhia, mesmo quando a companhia dormia no sofá na maior parte das vezes. A noite terminava com um trabalho danado de levar a pessoa para a cama, mas de repente ficou muito mais difícil assistir TV sem aquela presença morninha ao meu lado.

A despeito desse vácuo repentino de companhia, permaneço sereno e sei que ela encontrará em breve um cara de cabelos oleosos que precisará dos prodígios dos xampus translúcidos e de um sorriso dorminhoco de bom dia. De meu lado, sigo com a esperança de um dia encontrar a tampa do meu Tupperware. Enquanto ela não chega, vou me virando com esse líquido opaco da Mahogany.


Autor: Fabio Reynol
 01/10/2014
Blog Diário da Tribo







O Vendedor de Palavras 



Ouviu dizer que o Brasil sofria de uma grave falta de palavras. Em um programa de TV, viu uma escritora lamentando que não se liam livros nesta terra, por isso as palavras estavam em falta na praça. O mal tinha até nome de batismo, como qualquer doença grande, "indigência lexical". Comerciante de tino que era, não perdeu tempo em ter uma idéia fantástica. Pegou dicionário, mesa e cartolina e saiu ao mercado cavar espaço entre os camelôs. Entre uma banca de relógios e outra de lingerie instalou a sua: uma mesa, o dicionário e a cartolina na qual se lia: "Histriônico - apenas R$0,50!". Demorou quase quatro horas para que o primeiro de mais de cinqüenta curiosos parasse e perguntasse. 

- O que o senhor está vendendo? 

- Palavras, meu senhor. A promoção do dia é histriônico a cinqüenta centavos como diz a placa. 

- O senhor não pode vender palavras. Elas não são suas. Palavras são de todos. 

- O senhor sabe o significado de histriônico? 

- Não. 

- Então o senhor não a tem. Não vendo algo que as pessoas já têm ou coisas de que elas não precisem. 

- Mas eu posso pegar essa palavra de graça no dicionário. 

- O senhor tem dicionário em casa? 

- Não. Mas eu poderia muito bem ir à biblioteca pública e consultar um. 

- O senhor estava indo à biblioteca? 

- Não. Na verdade, eu estou a caminho do supermercado. 

- Então veio ao lugar certo. O senhor está para comprar o feijão e a alface, pode muito bem levar para casa uma palavra por apenas cinqüenta centavos de real! 

- Eu não vou usar essa palavra. Vou pagar para depois esquecê-la? 

- Se o senhor não comer a alface, ela acaba apodrecendo na geladeira e terá de jogá-la fora e o feijão caruncha. 

- O que pretende com isso? Vai ficar rico vendendo palavras? 

- O senhor conhece Nélida Piñon? 

- Não. 

- É uma escritora. Esta manhã, ela disse na televisão que o País sofre com a falta de palavras, pois os livros são muito pouco lidos por aqui. 

- E por que o senhor não vende livros? 

- Justamente por isso. As pessoas não compram as palavras no atacado, portanto eu as vendo no varejo. 

- E o que as pessoas vão fazer com as palavras? Palavras são palavras, não enchem barriga. 

- A escritora também disse que cada palavra corresponde a um pensamento. Se temos poucas palavras, pensamos pouco. Se eu vender uma palavra por dia, trabalhando duzentos dias por ano, serão duzentos novos pensamentos cem por cento brasileiros. Isso sem contar os que furtam o meu produto. São como trombadinhas que saem correndo com os relógios do meu colega aqui do lado. Olhe aquela senhora com o carrinho de feira dobrando a esquina. Com aquela cara de dona-de-casa ninguém jamais desconfiaria. Passou por aqui sorrateira. Olhou minha placa e deu um sorrisinho maroto se mordendo de curiosidade. Mas nem parou para perguntar. Eu tenho certeza de que ela tem um dicionário em casa. Assim que chegar lá, vai abri-lo e me roubar a carga. Suponho que para cada pessoa que se dispõe a comprar uma palavra, pelo menos cinco a roubarão. Então eu provocarei mil pensamentos novos em um ano de trabalho. 

- O senhor não acha muita pretensão? Pegar um... 

- Jactância. 

- Pegar um livro velho... 

- Alfarrábio. 

- O senhor me interrompe! 

- Profaço. 

- Está me enrolando, não é? 

- Tergiversando. 

- Quanta lenga-lenga... 

- Ambages. 

- Ambages? 

- Pode ser também evasivas. 

- Eu sou mesmo um banana para dar trela para gente como você! 

- Pusilânime. 

- O senhor é engraçadinho, não? 

- Finalmente chegamos: histriônico! 

- Adeus. 

- Ei! Vai embora sem pagar? 

- Tome seus cinqüenta centavos. 

- São três reais e cinqüenta. 

- Como é? 

- Pelas minhas contas, são oito palavras novas que eu acabei de entregar para o senhor. Só histriônico estava na promoção, mas como o senhor se mostrou interessado, faço todas pelo mesmo preço. 

- Mas oito palavras seriam quatro reais, certo? 

- É que quem leva ambages ganha uma evasiva, entende? 

- Tem troco para cinco? 



Autor: Fábio Reynol 
11/09/2006
Blog Diário da Tribo 








Nenhum comentário:

Postar um comentário