segunda-feira, 16 de setembro de 2013

CRÔNICAS

A Professora de Desenho

Falando a verdade, escola é uma chatice. Pelo menos a minha era uma chatice. Essa história de aprender tabuada, fazer prova, lição de casa... Eu não gostava. Ficava feliz quando aparecia uma gripe. Existe coisa melhor? Eu juntava todos os brinquedos em cima da cama. Traziam revistinhas. Chocolates. Televisão no quarto. Era ótimo. Disse que a escola era muito chata, mas esqueci de uma coisa: as aulas de desenho. Essas eram legais. 

Toda sexta-feira, depois do recreio, a dona Marisa (naquele tempo a gente não chamava a professora de "tia", nem usava só o nome dela, sem nada, assim: "Marisa"; tinha de ser "dona Marisa") - enfim, a dona Marisa saía da sala, e entrava a professora de desenho. A dona Andréia. 

A dona Marisa era meio gorducha, usava coque no cabelo e se pintava feita louca. Batom. Sombra azul nos olhos. Meio perua. Eu não gostava da dona Marisa. Mas aí entrava a professora de desenho. A dona Andréia era mocinha. Tinha cabelos castanhos. Lisos e compridos. 

A aula de desenho era uma farra. A gente abria os cadernos, que não tinham linhas, só folhas de papel em branco, para a gente fazer o que quisesse. Podia. Dona Andréia deixava. 
Ela era linda. Um dia, ela se atrasou. O tempo ia passando, e ela não chegava. Todo mundo estava louco para ter aula de desenho. 

Por que será que ela estava atrasada? 

Nessa idade, a gente sabe muito pouco da vida dos adultos. Talvez a dona Andréia tivesse brigado com o namorado. Pode ser que o diretor da escola tivesse dado uma bronca nela. Vai ver que tinha alguém doente na família. 

Mas a gente não queria saber de nada. Só queria ter aula de desenho. 

Foi quando a dona Andréia apareceu. Todos nós ficamos contentes. 

Não foi só contente. Foi uma espécie de alegria total, de gritaria, de explosão. 

Ela entrou na classe. 

Alguém gritou:

- É a Andréia! 

Não era o jeito certo de falar. Tinha de dizer "dona Andréia". Mas àquela altura ninguém estava ligando. Todo mundo começou a gritar: 

- É a Andréia! É a Andréia! 

O berreiro foi ganhando ritmo. Como se fosse torcida de futebol. 

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA! 

Parecia um jogador entrando em campo. Ou um cantor de rock. 

- AN-DRÉ-IA! AN-DRÉ-IA! 

Ela começou ficando alegre com a zoeira. Deu um sorriso. O sorriso dela era lindo. 

- AN-DRÉ-IA! 

Depois, ela ficou um pouco assustada. Não estava entendendo a bagunça. 

- AN-DRÉ-IA! 

Foi então que eu vi. Ela começou a chorar. 

E saiu da sala. 

Na hora, não entendi. 

Fiquei pensando. 

Quem sabe ela se assustou muito. Talvez não imaginasse que a gente gostava tanto dela. 

E, às vezes, muito amor assusta as pessoas. 

Pode ser que ela tivesse ficado brava. Tínhamos de dizer "dona Andréia", e não dissemos. Era meio chocante só dizer "Andréia", como se ela fosse irmã da gente, ou apresentadora de televisão, ou empregada. Ela também pode ter chorado por outro motivo qualquer. Estava triste com o namorado, ou com alguma doença da família, e toda aquela alegria da gente atrapalhando os sentimentos dela. A Andréia nunca mais voltou. As aulas de desenho acabaram. Comecei a perceber uma coisa. É que às vezes, quando a gente gosta demais de uma pessoa, não dá certo. Dá uma bobeira na gente. A gente começa a gritar: 

- Andréia! Andréia! 

E a Andréia fica sem jeito. Não sabe o que fazer. Se assusta. Se enche. Ouça este conselho. 

Se você gosta muito de alguém, tome cuidado antes de fazer escândalo. Não fique gritando "Andréia! Andréia!". Finja que você só está achando a pessoa legal, nada mais. Senão a Andréia sai correndo. 

Quando a gente gosta de alguém, tem de fazer como sorvete. Dá uma mordidinha. Mas não enfia o nariz e a boca na massa de morango. Senão, vão achar que a gente é idiota. 

As pessoas da minha classe gostavam tanto da Andréia que ela foi embora. Se a gente fosse mais esperto fingia que não gostava tanto.

Autor: Marcelo Coelho





Papagaio Congelado 

Um dia, um sujeito ganhou de presente um papagaio. 

O bicho era uma praga. Não demorou muito, logo se espalhou pela casa. 

Atendia telefone. 

Gritava e falava sozinho nas horas mais inesperadas. 

Dava palpite nas conversas dos outros. 

Discutia futebol. 

Fumava charuto. 

Pedia café, tomava, cuspia, arregalava os olhos, esparramava semente de girassol e cocô por todo lado, gargalhava e ainda gritava para o dono de casa: "Ô seu doutor, vê se não torra faz favor!" 

Uma noite, a família recebeu uma visita para jantar. 

O papagaio não gostou da cara do visitante e berrou: "Vai embora, ratazana!" e começou a falar cada palavrão cabeludo que dava medo. 

Depois que a visita foi embora, o dono da casa foi até o poleiro. Estava furioso: 

— Seu mal-educado, sem-vergonha de uma figa! Estou cheio! Agora você vai ver o que é bom pra tosse. 

Agarrou o papagaio pelo cangote e atirou dentro da geladeira: 

— Vai passar a noite aí de castigo! 

Depois, fechou a porta e foi dormir. 

No dia seguinte, saiu atrasado para o trabalho e esqueceu o coitado preso dentro da geladeira. 

Só foi lembrar-se do bicho à noite, quando voltou para casa. 

Foi correndo abrir a geladeira. 

O papagaio saiu trêmulo e cabisbaixo, com cara arrependida, cheio de pó gelado na cabeça. 

Ficou de joelhos. 

Botou as duas asas na cabeça. 

Rezou. 

Disse pelo amor de Deus. 

Reconheceu que estava errado. 

Pediu perdão. 

Disse que nunca mais ia fazer aquilo. 

Jurou que nunca mais ia fazer coisa errada, que nunca mais ia atender telefone e interromper conversa, nem xingar nenhuma visita. 

Jurou que nunca mais ia dizer palavrão nem "vai embora, ratazana". 

Depois, examinando o homem com os olhos arregalados, espiou dentro da geladeira e perguntou:

— Queria saber só uma coisa: o que é que aquele franguinho pelado, deitado ali no prato, fez? 


Anedota contada pelo Escritor: Ricardo Azevedo 





Escorrendo 

Aos cinco anos de idade o mundo é esmagadoramente mais forte do que a gente. (Aos 30 também, mas aprendemos umas manhas que, se não anulam as desproporções ao menos disfarçam nossa pequenez.) 

A ignorância não é uma bênção, é uma condenação: compreender a origem dos nossos incômodos faz uma grande diferença. Mas como, com tão poucas palavras ao nosso dispor? Palavras são ferramentas que usamos para desmontar o mundo e remontá-lo dentro da nossa cabeça. Sem as ferramentas precisas, ficamos a espanar parafusos com pontas de facas, a destruir porcas com alicates. 

Com 2 anos, meu nariz escorria sem parar na sala de aula. Eu não sabia assuar, nem sequer sabia que existia isso: assuar. Apenas enxugava o que descia na manga do uniforme, conformado, até ficar com o nariz assado. 

Lembro-me bem da sensação da meia sendo comida pela galocha enquanto eu andava. A cada passo, ela ia se engruvinhando mais e mais na frente do pé, faltando no calcanhar, e 
eu aceitava o infortúnio como se fosse uma praga rogada pelos deuses, uma sina. Não passava pela minha cabeça trocar de meia, desistir da galocha, pedir ajuda aos adultos: a vida era assim, não havia o que fazer. 

Numas férias, meu pai apareceu antes do combinado para pegar minha irmã e eu na casa dos meus avôs. Durante 400 quilômetros, falaram que existiam pessoas boas e pessoas más, que aconteciam coisas que a gente não conseguia entender, que mesmo as pessoas más podiam fazer coisas boas e as pessoas boas, coisas más. Já quase chegando a São Paulo, contou que nosso vizinho, de 6 anos, tinha levado um tiro. 

Naquela noite, enquanto as crianças da rua brincavam - mais quietas do que o habitual, sob um véu inominável -, um dos garotos disse: "Bem feito! Ele é muito chato". Hoje, penso que pode ter sido sua maneira de lidar com uma realidade esmagadoramente mais forte do que ele. 

Meu vizinho, felizmente, sobreviveu. Nossa ingenuidade é que não: ficou ali, estirada entre amendoeiras e paralelepípedos, sendo iluminado pela lâmpada intermitente de ·mercúrio, depois que todas as crianças voltaram para suas casas. 


Crônica de Antônio Prata / Autor do Inferno atrás da Pia 



Crônica para Dona Nicota 

Foi nos anos finais da década de 40. (Há tanto tempo!) Meu primogênito Ricardo completara 6 anos de idade, e resolvemos matriculá-lo no primeiro ano primário da Escola Americana, do já então tradicional Mackenzie College, que ficava a três quadras da nossa casa. E Ricardinho, que era uma criança tímida e um tanto ensimesmada, não gostou nem um pouco da experiência de ficar "abandonado" num lugar estranho, no meio de gente desconhecida — uma coisa para ele muito assustadora. E não houve jeito de fazê- lo aceitar tão insólita situação. Ele se recusava até mesmo a entrar na sala: ficava na porta, "fincava o pé", sem chorar, mas também sem ceder... Eu já estava a ponto de desistir da empreitada, quando a professora da classe, dona Nicota, se levantou e veio falar conosco. E todo o jeito dela, a maneira como ela olhou para o Ricardinho, o timbre e o tom da sua voz, a expressão do seu rosto e até a sua figurinha baixinha, meio rechonchuda, não jovem demais, muito simples e despojada, causaram imediatamente uma sensível impressão no menino. A tensão sumiu do seu rostinho, seu corpo relaxou, e - ora vejam! - ele respondeu com um sorriso ao sorriso da dona Nicota! 

- Vem ficar aqui comigo - ela disse. - Você vai gostar. - E acrescentou, para minha surpresa, - Eu mesma vou levar você para a sua casa. E amanhã cedo, eu mesma vou buscar você, para vir à escola comigo. 

Eu não sabia como agradecer. E nem foi preciso — o que dona Nicota disse, ela cumpriu. E durante vários dias, até semanas, ela passou pela nossa casa, pouco antes do início das aulas, e levou o Ricardinho pela mão, a pé, até a escola e a sua sala. E o trouxe de volta, da mesma maneira. E até quando, certo dia, o menino estava adoentado e não pôde ir à escola, ela voltou para lhe dar uma "aula particular", em casa — para ele não se atrasar no programa. Tudo isso na maior simplicidade, como se fosse a coisa mais natural do O Ricardinho adorava a dona Nicota - e não era para menos. Dona Nicota era a mais perfeita e linda encarnação da "professora primária" ideal - a mais nobre e fundamental das profissões: a de ser a primeira a preparar uma criança pequena nas suas primeiras incursões na vida real - com competência, dedicação, compreensão, paciência e carinho. E a consciência plena de estar dando à criança uma verdadeira base para o futuro cidadão. 
Por que estou contando tudo isso a vocês, hoje? Porque, no Dia do Professor, eu senti que não poderia prestar maior homenagem a todos os "mestres-escolas" do Brasil do que incluí-los neste “crônico-tributo" a dona Nicota, exemplo e paradigma de uma modesta e maravilhosa professora "Montessori Ana" e um grande serem humano. 
Ricardo saiu de sob a asa de dona Nicota lendo e escrevendo. E hoje, jornalista, tradutor e escritor, esse avô de três netos continua se lembrando de dona Nicota, com carinho e gratidão. 

Essa dona Nicota que a estas horas deve estar dando aulas montessorianas aos anjinhos do céu. 


Crônica de Tatiana Belinky 






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